quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Marcas eternas

Comecei mal, né?! Toda terça e hoje é quarta e nada de conto...


Desculpem, trabalho novo, correria!

 

Mas aí está, um conto mais denso...

 

Tema: TATUAGEM

Autora: Lê

Data: 17/04/2009

Título: Marcas eternas

 

 

            Ralf estava sentado em sua cadeira de balanço olhando o campo florido pela janela. Viu seus colegas da casa de repouso com seus netinhos correndo pelo gramado, aproveitando os últimos dias da primavera.

            Suspirou e tomou mais um gole de seu chá. Sentia saudades de sua família que ainda estava presa na Alemanha oriental. Sentiu-se sozinho.

            A enfermeira entrou lhe trazendo seus medicamentos.

            - Enfermeira, você poderia pedir que alguém me levasse lá fora? Gostaria de sentir as últimas brisas quentes do verão.

            - Tudo bem, aguarde um pouco que nossos enfermeiros estão em ronda também.

            - Tudo bem!

            Sentiu uma ponta de alegria interna, fazia duas semanas que não sentia as flores, que não passeava pelo jardim. Isso lhe deixava muito triste, porém sabia que não podia exigir que o levassem todos os dias para um passeio. Estava com 85Kg e a casa ainda não havia conseguido uma cadeira de rodas para ele.

            Logo chegaram ao seu quarto dois enfermeiros fortes.

            - Boa tarde senhor Ralf! Pronto para dar uma voltinha?

            - Muito! Vocês já colocaram a minha cadeira na varanda?

            - Sim!

            - Sem querer abusar da boa vontade de vocês, desta vez vocês poderiam me colocar embaixo daquela árvore ali, perto das flores e das crianças?

            - Podemos sim, aguarde só um pouco que já retorno.

            O mais velho dos dois correu arrumar a cadeira antes do transporte. O outro ficou lhe fazendo companhia. Ralf não o conhecia e percebeu seus olhos fixos na ausência de suas pernas.

            - Pode perguntar, você quer saber onde estão minhas pernas, certo?

            - Não, não, desculpe, erm...

            - Você é novo aqui, certo? Não te contaram as histórias? Cada um cria uma história a meu respeito, algumas extremamente fantasiosas como a que eu era um devorador de criançinhas nazista que foi vingado por um pai bravo.

            Ralf gargalhou e observou a expressão de susto do enfermeiro.

            - Não se preocupe, não é nada disso. Inventam essas coisas, pois eu nasci na Alemanha. Mas eu perdi as pernas ao tentar salvar meus filhos do campo de concentração. Consegui, perdi somente as pernas, mas sei que eles estão vivos e bem e isso vale mais do que mil pernas.

            Nisso o outro enfermeiro retornou

            - Tudo pronto, vamos?

            Os dois enfermeiros fizeram uma cadeira com os braços e carregaram o senhor até o lado de fora.

            - Sr Ralf, já sabe, quando quiser voltar para dentro basta levantar a mão q viremos lhe carregar!

            - Ok, muito obrigado rapazes!

            Ralf fechou os olhos, deitou a cabeça no encosto e sentiu a brisa lambendo-lhe a face, escutou os passarinhos ao longe, a água do riacho próximo correndo, as crianças rindo e percebeu que assim a saudade de seus filhos diminuía um pouco, sentia-se mais perto deles.

            Relembrou seu tempo na longínqua Alemanha, sua infância correndo pelos campos à caminho da escola, roubando maças do vizinho para o lanche... Deixou seu pensamento fluir e ir criando em sua cabeça toda a retrospectiva da sua vida até chegar às primeiras notícias da guerra. Tudo o que era colorido e alegre ficou preto, vermelho e perturbador. Abriu os olhos tomando ar, como se tivesse emergido de um poço. Olhou para o seu próprio pulso e viu algo que o marcava mais do que a ausência de suas pernas: a tatuagem. A marca por ter uma religião, por acreditar em Deus e na Paz. Haviam marcado seu código no primeiro dia no campo de concentração. Sabia por ter acompanhado outros tantos passando e recebendo as marcas. Mas não se lembra de nada das duas primeiras semanas de estada no campo. Lembra da dor da perda e do aprisionamento que eram maiores do que a dor da cicatrização das pernas. Sabia que com as tecnologias atuais poderia facilmente removê-la, mas não queria, sabia que simbolizava a sua vida, o seu “karma” o seu pesar e o motivo de ainda estar vivo. Pensava que apagando seria como jogar um lençol em cima de um prédio para tentar cobri-lo.

            Perde-se nos pensamentos olhando aqueles números, sonhando em como poderia fazer para encontrar seus filhos perdidos.

 

            Enquanto isso, os enfermeiros estavam parados na varanda observando as pessoas na varanda e no jardim, esperando que precisassem de seu auxilio. Quando o mais novo pergunta:

            - Qual a história desse seu Ralf?

            O outro olha bem para ele e pergunta:

            - Você tem certeza que quer se envolver na vida pessoal dos pacientes? Pode ser pesado.

            - Sim, estou aqui, morando aqui junto com eles, sinto que devo conhecê-los para assim ajudá-los melhor!

            - Muito bom garoto, você tem um bom futuro pela frente! Bem, vejamos, por onde começar...

            Contou toda a história, de onde veio, como perdeu as pernas salvando os filhos, da vida no campo de concentração, até seu resgate por soldados brasileiros que o trouxeram para cá.

            O mais novo decidiu então ajudar. Foram meses de pesquisa.

           

            No início da primavera seguinte o Sr Ralf novamente chamou os enfermeiros pois queria aproveitar os dias quentes se aproximando. Porém desta vez apareceu primeiramente Ágata, a responsável por seus cuidados pessoais. Sentiu um sorriso maior na simpática ajudante.

            - O que lhe faz tão feliz hoje?

            - Hoje é um dia especial para todos!

            - Por quê?

            - O senhor verá, venha, vamos tomar um banho, fazer sua barba e colocar uma roupa bonita!

            - Mas isso só acontece à noite, o que está acontecendo?

            - Apenas siga minhas instruções, já lhe falei que é um dia especial.

            - Tudo bem, tudo bem, gosto de surpresas!

            E pensou que deveria ser aniversário de algum de seus colegas ou até de um dos médicos. Era normal festas comemorativas, mas nunca levadas tão à sério.

            Após o banho e toda a sua higiene os dois enfermeiros o levaram para a árvore.

            Ele ficou lá, pensando que havia se passado mais um ano sem nenhuma visita, sem nenhum carinho conhecido, sem sequer uma carta! Mas como saberiam da sua localização? Havia sido obrigado a mudar de nome para poder se alojar com segurança. Enquanto deixava seus pensamentos em devaneio escutou passos. Virou-se e viu dois casais e 5 crianças se aproximando. Sua curiosidade se aguçou e ao chegarem mais perto reconheceu, mesmo com os 37 anos que haviam passado, os olhos de seus filhos. Imediatamente começou a chorar e eles correram para abraçá-lo.

            Todos os enfermeiros e habitantes da casa estavam na varando observando a emocionante visita.

            Interromperam o abraço e se olharam, um sorriso incontido naqueles dois homens e naquela mulher. Era sua garotinha, como havia crescido!! E seu filho então, havia se tornado um homem muito bonito!

            Neste momento os filhos viram a marca no pulso do pai. Viraram então seus pulsos e formaram um triângulo marcado.

            Lágrimas de tristeza e ódio correram. Havia sido em vão todo o seu esforço, estavam todos marcados.

            A filha logo percebeu e falou:

            - Não tenha ódio pai, estamos vivos e unidos. A mesma tatuagem que nos separou é o que nos une agora através da vontade e esforço de um de seus enfermeiros.

            Ralf sentiu um alívio e um sentimento de perdão percorrer seu corpo. Abraçaram-se novamente. O resto da família se aproximou, foram todos devidamente apresentados e sentaram-se à volta do Sr. Ralf e começaram a conversar, contar tudo o que havia acontecido nos últimos 37 anos, evitando o assunto guerra. Apenas amores e felicidade, pois depois de tudo que haviam passado, sabiam que apenas isso era importante na vida.

            Ralf virou-se para a varanda para agradecer seu anjo salvador e estavam todos com lágrimas nos olhos.

            - É por isso que eu amo a minha profissão. Falou o mais novo para seu colega enfermeiro.

 

 

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